Ir além do diagnóstico: entre a liberdade do reconhecimento e a solidão do rótulo
- Yago B.
- 27 de nov. de 2024
- 8 min de leitura

Quando eu tinha 12 anos de idade, as notas do meu boletim não poderiam ser piores. Em todas as matérias de um colégio tradicional do Rio de Janeiro, parecia que eu vivia no limiar eterno entre recuperação e reprovação do ano escolar.
Apesar de nunca ter repetido de ano na escola, viver nessa insegurança era inevitável para os meus pais, que buscavam entender o que havia de errado com aquele menino que não conseguia corresponder ao ideal de aluno de um colégio líder em aprovações no vestibular, cujos custos representavam um grande impacto na renda de casa e pelo qual meus pais tanto lutaram para poder matricular o filho.
Eu, no entanto, não me inquietava com nada.
Em minhas memórias, lembro-me de ser um menino desinteressado pelo colégio, que nunca estudava em casa a matéria que havia sido passada em sala de aula, mas que tinha interesses vívidos no mundo ao meu redor. A escola não parecia merecer minha atenção, e até hoje me assombro como sempre passava raspando nas disciplinas, mesmo nunca tendo estudado fora da classe, e como colegas mais dedicados do que eu às vezes repetiam de ano.
Colada a essa imagem, vinha a que os outros davam de mim: relapso, desatento, algo estava de errado com aquele menino.
Na busca por um conserto, uma trajetória foi traçada até chegar à Dra. Silvia, uma simpática psiquiatra que, após algumas consultas, constatou: — Trata-se de um caso inquestionável de TDAH, que será resolvido com Ritalina.
A Mudança de Ambiente e a Medicação
Além da medicação, a Dra. Silvia foi sensível o suficiente para entender que só ela não daria conta. Era preciso me retirar daquele colégio tradicional, que se organizava mais em termos de um exército do que de um ambiente escolar: cada série letiva tinha seis salas, com quarenta alunos cada, um ritmo inesgotável de provas de matérias que se alternavam a cada semana, sem intervalos, e cuja média definiria o aprendizado final do aluno.
Naquele colégio, eu era um código que representaria uma aprovação futura no vestibular, corolário do sucesso dos bons alunos.
Em oposição aquele colégio, Dra. Silvia aconselhou meus pais a me matricularem em um colégio pequeno, perto de casa, com uma série por ano, onde eu poderia formar uma comunidade e ter uma relação mais pessoal com meus colegas e professores. Deu certo.
A introdução da medicação aliviou meus pais, mas me deixou em estado estranhamente apático. As matérias das áreas de exatas, que eram meus pesadelos, tiveram melhoras significativas no meu boletim.
A medicação sem dúvida me potencializou nas épocas de provas, não mais semanais, mas bimestrais, mas dela apenas me lembro da apatia em que me deixava, da completa vontade de socar qualquer pessoa que me cumprimentasse quando eu tentava prestar atenção às aulas de matemática e da recusa a qualquer alimento.
No fim, consegui ter uma relação cínica com o medicamento: dizia tomá-lo todos os dias, quando apenas fazia uso dele em momentos estratégicos, pois, para mim, a perda de atenção ao mundo era mais danosa que a perda de atenção à fórmula de Bhaskara.
Superação e Reflexões
Na entrada do ensino médio, um forte desejo de cursar a faculdade, movido pelo idealismo de ser um universitário, foi mais eficaz do que qualquer dosagem de metilfenidato.
O desejo, genuinamente meu, não mais dos meus pais ou da imposição do dono do colégio, fez com que, no ensino médio, eu me tornasse um leitor voraz e até fosse admitido na turma dos 5 melhores alunos do colégio, que tinham o privilégio de ter aulas adicionais à tarde como recompensa pelo bom desempenho escolar.
Passei em todas as universidades públicas às quais tinha me candidatado, tendo o privilégio de escolher aquela em que entraria segundo minha conveniência.
Ser reconhecido como TDAH trouxe um alívio, indistinguível se era meu ou dos meus pais: não era culpa minha, mas de uma condição que me habitava, da qual eu era mais vítima do que culpado, e que poderia ser resolvida.
Negociando com esse rótulo, consegui traçar uma trajetória singular, mas não posso deixar de reconhecer as pegadas dos meus passos para além do que a ressonância magnética com emissão de prótons dizia — naquela época, o diagnóstico não era só clínico, mas dependia da comprovação de uma imagem cerebral atestando o déficit de dopamina no córtex pré-frontal.
A mudança química trazida pelo medicamento foi combinada com uma mudança social: foi preciso mudar meu ambiente, meus laços, para que o menino-problema pudesse brilhar e ser reconhecido como alguém vivaz.
Uma visada mais neurologicista — que não deve ser confundida com neurológica — daria os créditos ao medicamento, mas hoje não tenho dúvidas de que o segundo fator foi de maior importância.
O medicamento foi interrompido de forma gradual, as consultas à psiquiatra foram diminuindo de forma não intencional, até chegar ao ponto de nem mais me lembrar que precisava tomá-lo. O ambiente novo, recheado de laços e amigos, ganhou cada vez mais importância.
Quase quinze anos depois, os laços com aqueles que me cercavam permanecem.
Uma Breve História dos Diagnósticos
Podemos distinguir dois momentos quanto à mudança do século XX para o XXI: enquanto no primeiro, ter um diagnóstico psiquiátrico era uma sentença, no século XXI, saber de qual patologia se sofre ganha ares de libertação pessoal e possibilidade de reconhecimento.
Na pena provocadora do filósofo Paulo Vaz, o psiquiatra passou de estar ao lado da figura do policial, normalizadora, para estar mais próxima à figura do traficante, fornecedor de susbstâncias que aliviam a dor da existência.
Nascida de uma necessidade de classificação e domesticação dos corpos, a psiquiatria no século passado se distinguiu da neuroanatomia ao propor uma nova forma de pensar o psiquismo: não se trata mais dos danos biológicos que teriam no psiquismo sua expressão (pois muitos fenômenos deixaram médicos atônitos diante de uma condição fisiológica aparentemente perfeita), e sim da ideia de função ou disfunção.
Se a sexualidade teria como função a reprodução, o disfuncional era a sexualidade diferente, e, dessa forma, a homossexualidade, o prazer feminino, entre outros, passaram a ser classificados como patológicos e deveriam ser objetos de catalogação, normalização, internação e medicalização.
Um corte para o século seguinte e a proposta posterior dos diagnósticos passou a ser outra: não mais se trata de normalizar o sujeito, mas de libertá-lo de seu sofrimento.
Enquanto ter um diagnóstico há cem anos era uma sentença, hoje é a possibilidade de reconhecer que aquele que sofre não está sozinho, e nem é o culpado de ser da forma que é.
Os movimentos políticos do final do século passado, entre eles o feminismo e o movimento LGBTQIAP+, foram essenciais para essa mudança, pois reivindicam a possibilidade de fala daqueles que até então eram falados pelos discursos dominantes: pelas famílias, pelos maridos, pelos padres, pelos patrões, pelos policiais e governantes, cada um deles tendo um privilégio social a preservar.
A necessidade de uma exposição linear não pode deixar passar o fato de que a querela dos diagnósticos não foi tão linear como a exposta acima. Havia, no início do século passado, um agente escondido, Freud, que entendeu que, mais do que uma relação com a função, a estrutura psíquica era uma forma narrativa autobiográfica.
As histéricas, tidas como loucas ou mentirosas, passam a ser entendidas como reprimidas sexualmente, e surge uma nova ideia das psicopatologias: mais do que seres disfuncionais, as pessoas que padeciam ilustravam em seu corpo a luta travada entre as pulsões individuais e as exigências da cultura.
Ambígua e revolucionária em sua proposta, a psicanálise foi absorvida pelo discurso norte-americano psiquiátrico, tornando-se um agente normalizador do Eu e substancializador dos diagnósticos.
Foi necessária a reformulação da psicanálise por Jacques Lacan, na metade do século XX, para que ela voltasse à sua proposta revolucionária de não conformidade dos sujeitos, mas essa história é tema para outro texto.
A normalização dos diagnósticos na sociedade foi acompanhada pela entrada desses termos no discurso corrente: pessoas passaram e continuam a utilizar jargões psiquiátricos e neurológicos para dar sentido ao mundo. Déficit de dopamina, TDAH, graus de autismos, entre outros, são termos que estabilizam o conflito e permitem aos indivíduos explicarem aos outros um sumário de quem são.
Assim, da mesma forma que o menino-problema de 12 anos poderia se sentir aliviado — afinal, há algo em nele além da vontade consciente que explica por que era assim —, os diagnósticos mostram como muitos dos problemas vivenciados pelos neuroatípicos não são apenas falta de esforço ou vontade, mas um modo diferente de funcionamento em um mundo insensível às diferenças.
As Pegadinhas de se Identificar Demais com o Próprio Diagnóstico
No entanto, o ganho de liberdade e alívio trazido pela possibilidade de se fazer reconhecido pelas categorias diagnósticas deve ser acompanhado por sua crítica, entendendo a crítica não como oposição, mas como análise daquilo que é dado.
Criticar significa entender que as dinâmicas culturais e psicológicas não são simples dados da natureza ou uma descoberta científica desinteressada, mas trazem possibilidades e encruzilhadas, avanços e impasses.
Um dos impasses trazidos pela normalização do jargão psi no cotidiano pode ser muito bem ilustrado nas palavras de Rachel Aviv, em seu livro Estranhos a nós mesmos, que examina relatos de pessoas diagnosticadas, mas cuja experiência de vida vai além do rótulo de manuais de psiquiatria. Destaco alguns trechos, em tradução livre:
"Ao criar uma linguagem compartilhada, a psiquiatria contemporânea pode aliviar a solidão das pessoas, mas podemos correr o risco de subestimar o impacto de suas explicações, que não são neutras: elas alteram os tipos de histórias sobre o eu que contamos como 'insight' e como entendemos nosso potencial."
"Histórias sobre doenças psiquiátricas são frequentemente profundamente individuais; a patologia emerge de dentro e é suportada dessa forma também. Mas essas histórias negligenciam onde e como as pessoas vivem, e as maneiras como sua identidade se torna um reflexo de como os outros as veem."
Volto à minha biografia como ilustração do que se esboça neste texto: há mais de 15 anos, o diagnóstico de TDAH deveria ser feito baseado em exames; hoje, há um consenso de que se trata de um diagnóstico clínico, isto é, baseado na investigação do psiquiatra de acordo com os critérios fornecidos pelo paciente, sem a necessidade de consulta a uma imagem radiológica.
Preenchendo certo número de sintomas, checkboxes em uma lista, o psiquiatra pode chegar à conclusão de que se trata do caso, encaminhar para a medicação e fazer o acompanhamento a partir das primeiras consultas.
No entanto, se esse diagnóstico pode explicar o hiperfoco em determinados temas e a completa desatenção em outros, o que faz que, para um dado indivíduo, seu hiperfoco seja em artes e, para outro, seja em lógica de programação?
Há um componente essencialmente singular, do desejo, que torna possível que, mesmo em um diagnóstico culturalmente disseminado, se expressem subjetividades tão diferentes.
Uma pessoa com o chamado hiperfoco — proponho, ousadamente, outro termo: tesão — em alguma área socialmente valorizada certamente terá um status social superior àqueles que têm o seu tesão em áreas não produtivas socialmente.
Indo Além do Diagnóstico
O diagnóstico ilustra uma determinada gramática e traços comuns, mas é insuficiente para dar conta de quem se é. Não se trata de jogar fora as descobertas recentes em termos de neurociência, mas entender que apenas enquadrar a experiência individual nesses termos é insuficiente para dar conta de um indivíduo.
Não é sem razão que o século XX nasce com a capa da Times dizendo que Freud está morto, ao passo que, em 2024, já há certo consenso científico de que o tratamento medicamentoso tem chances de menos de 50% de sucesso se não acompanhado pelo tratamento psicoterapêutico.
Aqui abre-se uma nova frente de embates entre as diversas correntes psicoterapêuticas, mas, entre elas todas — filhas da invenção da psicanálise como primeira psicoterapia, diga-se de passagem —, resta um elemento comum: o contato direto entre seres humanos que compartilham um espaço de fala.
Ir além do diagnóstico, nesse sentido, é reconhecer que seu alívio não pode ser ingênuo: significante nenhum dá conta da experiência humana e nem pode tentar resolvê-la, seja ingerindo substâncias ou os rótulos imaginários que são dados pelos outros.
Há algo de inefável nas modalidades de sofrimento, que exige que sejam contrapostas por uma elaboração possível somente no contato com outros seres humanos. É preciso falar, é preciso se reposicionar no campo de ação humano, para que qualquer mudança subjetiva seja efetiva, e não apenas reprodução mecânica de listas de diagnósticos.
Eis a proposta radical da psicanálise em tempos em que cada um pode explicar seu sofrimento através de categorias em determinadas listas: não combatê-las, mas não se deter nelas. Porque elas não são capazes de falar suficientemente por nós, tampouco somos capazes de falar e dar conta de nossa existência, e é preciso falar para que possamos ser reconhecidos por nós mesmos.
E porque nunca será possível falar o suficiente, é que nunca podemos deixar de falar: a possibilidade da fala nasce de sua impossibilidade.
Um psiquiatra poderia dizer, como a Dra. Silvia disse: "Você é TDAH". Ao que só posso responder: "Sou humano, demasiado humumano."
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